A Lei nº 12.846, também chamada Lei Anticorrupção, completa cinco anos de publicação em 1º de agosto.[1] Além de importante melhoria no marco legal de combate à corrupção, ela levou ao fortalecimento de uma cultura de ética e governança corporativa tanto em empresas privadas como em estatais e sociedades de economia mista.

O copo meio cheio

Em primeiro lugar, houve uma mudança de foco, para centrar os esforços de combate à corrupção na figura do corruptor, em especial pessoas jurídicas e grupos econômicos.

A Lei Anticorrupção trouxe a responsabilidade administrativa de natureza objetiva, sem a necessidade de inquirir intenção, dolo ou culpa do agente. Além de facilitar o combate ao ilícito por meio dos procedimentos administrativos sancionadores (mais céleres e objetivos, sem a rigidez e o excesso de garantias típicos do processo penal), a responsabilidade objetiva estimula as empresas a investir na prevenção de condutas ilícitas e no fomento de uma cultura de compliance.

Como os atos ilícitos cometidos por colaboradores passaram a trazer responsabilidade direta para as empresas, mesmo se realizados sem autorização ou sequer o conhecimento da organização, as empresas começaram a investir mais pesadamente em programas de compliance e integridade, monitoramentos, códigos de conduta e políticas internas, treinamentos corporativos, conscientização dos colaboradores, canais de denúncia, entre outros. Conforme pesquisa da KPMG e Amcham em 2017, os temas “compliance” e “integridade” estão entre as três maiores prioridades das empresas, e cerca de 60% das brasileiras aumentaram significativamente seus investimentos em compliance nos últimos anos.

Houve também uma mudança de percepção de reprovabilidade, na medida em que a sociedade e as autoridades públicas passaram a entender que a figura do corruptor privado deve ser tão repudiada quanto a do agente público corrupto. Historicamente, a corrupção era combatida pelo Código Penal, com os crimes de corrupção ativa (art. 333 – oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público) e passiva (art. 317 – solicitar ou receber vantagem indevida em razão de função pública), além de outros diplomas legais focados no agente público, como a lei de improbidade administrativa (Lei nº 8.429/92) e a lei de licitações (Lei nº 8.666/93). Hoje, combate-se a corrupção principalmente pela punição das pessoas jurídicas corruptoras, utilizando especialmente sanções pecuniárias (multas e devolução de vantagens ilícitas) e não-pecuniárias (proibição de contratar, perda de incentivos, suspensão de atividades).

Também restou evidente que as punições jurídicas não são as únicas ferramentas indutoras do comportamento ético e íntegro pelas empresas: na era da transparência e informação plena, as respostas do mercado, dos consumidores e dos colaboradores podem trazer sanções reputacionais extremamente onerosas para empresas corruptas, como desvalorização da cotação das ações em bolsa,[2] perda de fontes de financiamento, rejeição de produtos por consumidores, fuga de talentos, entre tantos outros. Da mesma forma, prêmios de integridade estimulam condutas éticas e práticas de conformidade, como prêmios de compliance, rankings de transparência e governança, apreciação das ações[3] e criação de valor intangível. E mais: as empresas punidas que celebram leniência começam a atuar como “cães de guarda” nos mercados em que operam, na medida em que, com regras mais rigorosas, passam a ter uma desvantagem competitiva com relação aos concorrentes que praticam atos ilícitos.

A Lei Anticorrupção criou também um regime de responsabilidade administrativa capaz de impor sanções a todo um grupo empresarial. O art. 4º, par. 2º, estendeu a responsabilidade objetiva para o grupo econômico, incluindo sociedades controladoras, controladas, coligadas ou consorciadas. Em que pese a nobre intenção de estimular o combate à corrupção no contexto de conglomerados econômicos, faltam parâmetros claros para delimitar o alcance dessa solidariedade, em especial no contexto de investimentos acionários e operações de fusões e aquisições. É preciso que as autoridades utilizem esse mecanismo contra entidades de conglomerados e seus acionistas apenas na exata medida em que eles tenham contribuído para o cometimento ou a perpetuação de um ilícito.

Outra alteração significativa foi a expansão dos trabalhos de monitoramento e diligência para entes externos à organização. Por exemplo, um dos critérios para se avaliar a efetividade de um sistema de compliance é a existência de diligência em terceiros, o que inclui fornecedores, distribuidores, representantes e agentes. Em outras palavras, a terceirização das atividades e do risco de condutas ilícitas não pode mais ser usada como desculpa para se perpetuar condutas irregulares. Da mesma forma, no contexto de aquisições e investimentos, é necessário conduzir diligências nas empresas adquiridas para mitigar o risco de sucessão por passivos relacionados a condutas ilícitas.

Além disso, o novo sistema legal cria um forte estímulo para que os administradores atuem de forma diligente, preventiva e proativa. Tradicionalmente, a responsabilidade criminal dos administradores dependia de comprovação de sua participação efetiva nos atos ilícitos, seja com dolo (ainda que na modalidade atenuada do dolo eventual) ou com culpa (nas modalidades de negligência ou omissão).

Precedente recente do Supremo Tribunal Federal (Ação Penal 470, conhecida como “Mensalão”) expandiu a responsabilidade criminal dos administradores com a chamada teoria do domínio do fato, que utilizou a conceito de crime comissivo por omissão para punir administradores que, tendo o dever especial de agir e prevenir atos ilícitos em razão de seu cargo, consentem (por dolo ou culpa) com atos ilícitos de colaboradores sob sua supervisão. Com isso, os administradores passaram a investir mais pesadamente em treinamento e ferramentas de monitoramento e controle em suas linhas de comando.

Vale notar que o regime de responsabilização administrativa de empresas conseguiu alcançar maior eficiência na condução de investigações e recuperação de valores do que os processos tradicionais do direito penal. Por meio da justiça negociada e da colaboração, as autoridades brasileiras foram capazes de celebrar acordos de leniência e recuperar valores expressivos de grupos empresariais, em cifras muito elevadas.

No âmbito das empresas estatais e sociedades de economia mista, a melhoria da governança e de sistemas de compliance e integridade veio a ocorrer com a aprovação da Lei nº 13.303/2016 (Lei das Empresas Estatais) e de outros decretos.[4] Entre outros propósitos, esses normativos serviram para conferir maior transparência e profissionalismo à gestão das estatais e, principalmente, coibir (ou reduzir) o modelo de nomeação política para cargos de direção, um dos principais fatores de propagação de corrupção. Por exemplo, a nomeação de conselheiros e diretores de empresas estatais e sociedades de economia mista passa a depender de requisitos mínimos de capacidade técnica, experiência profissional e formação acadêmica e reputação ilibada,[5] o que dificulta a apropriação dos cargos públicos por partidos políticos. Alguns tipos de nomeação ficam expressamente vedados.[6]

O copo meio vazio

Se por um lado, porém, o modelo da Lei Anticorrupção se mostrou capaz de melhorar a eficiência da persecução de condutas ilícitas, por outro ele revelou um descompasso entre órgãos de controle e fiscalização. Testemunhamos, nesses anos, falta de coordenação e insegurança jurídica entre os entes públicos de combate à corrupção. É que nosso legislador constituinte foi muito generoso ao distribuir competências para órgãos encarregados da proteção à moralidade administrativa e ao erário público.

Ao Ministério Público (MP) cabe a tarefa de tutelar o patrimônio público e social, em nível federal e estatal.[7] Ao Tribunal de Contas da União (TCU) e seus congêneres estatais, cabe o dever de fiscalizar o emprego dos recursos públicos em geral.[8] À Advocacia Geral da União (AGU), ficou reservada a missão de defender judicial e extrajudicialmente os interesses da União, incluindo os atos de corrupção.[9] Além disso, a Lei nº 10.683/2003 criou a Controladoria Geral da União (CGU) como órgão assessor do chefe do Poder Executivo Federal em temas relacionados à moralidade administrativa. Tem-se, pois, quatro entidades no plano federal disputando espaço no controle da corrupção.

Criou-se no Brasil o desenho institucional de “multiagências”, em que diversos órgãos e entidades públicas detêm competência para realizar ações preventivas e repressivas acerca de atos de corrupção, nas esferas administrativa, cível, criminal e dos tribunais de contas. Se por um lado um sistema multiagências dificulta o sequestro do Estado (na medida em que sempre haverá algum ente público não integrado ao esquema corrupto), por outro lado esse sistema, se não atuar de forma coordenada e una, pode estimular a competição destrutiva entre agências e trará enorme insegurança jurídica ao jurisdicionado, o que afinal desestimulará a utilização da leniência. Vemos hoje uma judicialização dos acordos de leniência firmados pelo MPF, em ações movidas pelas outras autoridades de combate à corrupção, em grande parte com o fim de proteger suas esferas de competência e seu interesse institucional/corporativo.

Por exemplo, a pedido do MPF, foi revogada liminar em ação de improbidade administrativa contra empresa de engenharia que celebrou acordo de leniência, liminar essa que decretava indisponibilidade de seus bens. Em sede de agravo de instrumento proposto pela AGU,[10] o TRF-4 reconheceu ser necessária a participação da AGU nas discussões a respeito da reparação integral do dano e do quantum a ser indenizado. Por isso, o acordo de leniência celebrado com o MPF teria um vício sanável, pois dependeria de ratificação pela AGU. Assim, enquanto não houver ratificação pela AGU, deve prosseguir a ação de improbidade e os bens devem continuar bloqueados.

Em outro caso, determinada construtora impetrou mandado de segurança preventivo no STF[11] pedindo que o TCU fosse proibido de decretar inidoneidade, o que estava prestes a acontecer. Na mesma linha, o STF reconheceu a competência do TCU para fiscalizar o dinheiro público e quantificar o dano ao erário, de maneira que, se o acordo não contemplar a reparação integral do dano e não tiver a participação do TCU, deve a ação de improbidade prosseguir.[12]

Mais recentemente, a 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba proibiu o uso de provas obtidas pela Operação Lava Jato contra delatores e empresas que reconheceram crimes e passaram a colaborar com os procuradores à frente das investigações.[13] A decisão orienta que os órgãos de controle (como TCU e CGU) e outras entidades (como Banco Central, Receita Federal e Cade) não podem usar provas contra colaboradores sem autorização. Com a decisão, que atendeu a um pedido do MPF, os delatores e empresas ficam blindados contra o cerco dos outros órgãos de controle. Para os procuradores do MPF, a medida é necessária para evitar que a insegurança jurídica criada pela falta de coordenação entre os vários órgãos de controle desestimule novos colaboradores, prejudicando o combate à corrupção.

Como então garantir a coordenação das autoridades públicas e a segurança jurídica para o leniente? Isso pode ocorrer, por exemplo, por meio de: (i) um processo de adesão pelos demais órgãos aos acordos celebrados por um deles, como requisito para poder usar as provas coligidas no âmbito da leniência; (ii) criação de acordos de cooperação e memorandos de entendimentos entre as autoridades, para garantir a atuação coordenada;[14] (iii) regras legais que estimulem a cooperação efetiva entre as autoridades, com prazos peremptórios para manifestação, sob pena de anuência tácita; (iv) criação de uma comissão ou comitê com representantes de todos os órgãos legitimados, para negociar e deliberar um único acordo de leniência para uma dada empresa; ou (v) criação de programas de negociação de leniências, pré-validados (em abstrato) pelas autoridades, de forma que as leniências firmadas por quaisquer autoridades respeitando esses programas sejam honradas pelas demais agências.

E o futuro?

Sem sombra de dúvida, o balanço do primeiro quinquênio da Lei Anticorrupção foi muito positivo e o ferramental para evoluções ainda maiores está à nossa disposição. No entanto, novas medidas serão necessárias para que se continue a perpetuar a cultura da ética e governança corporativa. Entre os desafios para o futuro, destacam-se: (i) ampliação dos poderes e melhoria de estrutura e orçamento da CGU; (ii) criação de critérios objetivos de cálculo para imposição de multas e outras sanções; (iii) alteração dos regimes de prescrição para evitar impunidades; (iv) revisão dos limites do foro por prerrogativa de função; (v) fomento à cooperação entre todos os órgãos de controle para segurança do jurisdicionado; e (vi) expansão da Lei Anticorrupção para também coibir a corrupção privada (como ocorre por exemplo no Reino Unido e na França).

A semente para um efetivo combate à corrupção não somente já foi plantada, como já estamos colhendo seus primeiros frutos. No entanto, a mudança para uma cultura plena de integridade é mais demorada, exige o constante apoio da sociedade e provavelmente levará mais de uma geração.


[1] Entrada em vigor em 1º de janeiro de 2014.

[2] Por exemplo, com a Operação Lava-Jato, o valor de mercado da Petrobras passou de R$ 380 bilhões, em 2010, para R$ 120 bilhões em 2015. A JBS e a BRF tiveram queda de 10,59% e 7,25% na cotação de suas ações, respectivamente, quando foi deflagrada a Operação Carne Fraca.

[3] Empresas do Índice de Governança Corporativa da BM&FBovespa registraram apreciação em suas ações 122% superior às ações de empresas do IBOVESPA. “Os dados confirmam: boas práticas de governança valorizam ações” - Revista Exame, 03 de julho de 2017.

[4] Por exemplo, Decreto Federal nº 9.203 (regulamenta a governança pública na administração federal) e Decreto Municipal de São Paulo nº 58.093 (regulamenta a governança pública nas empresas públicas e sociedades de economia mista do município de São Paulo).

[5] A Lei das Empresas Estatais estabelece requisitos mínimos de elegibilidade para os administradores (incluindo conselho de administração e diretoria): (i) 10 anos de experiência profissional na indústria; (ii) 4 anos com cargo de direção ou chefia, cargo de comissão, corpo docente ou pesquisador, ou profissional liberal de mercado; (iii) formação acadêmica compatível; e (iv) não ser inelegível (seguindo os preceitos das Leis Complementares nº 64 e nº 135). Será criado um comitê de elegibilidade para aferir os requisitos acima.

[6] Por exemplo, a Lei das Empresas Estatais proíbe nomeação de representantes de órgãos reguladores, ministros ou secretários de Estado, integrantes de estrutura decisória de partidos políticos nos últimos 36 meses, sindicalistas, representantes de entidades que tenham firmado contratos ou parceria com as estatais, bem como pessoa com outras formas de conflitos de interesses.

[7] Constituição Federal do Brasil, art. 129. III.

[8] Constituição Federal do Brasil, art. 70.

[9] Constituição Federal do Brasil, art. 131.

[10] Agravo de Instrumento 5023972-66.2-17.4.04.0000/PR

[11] Medida cautelar em Mandado de Segurança 35.435-DF

[12] Exceto que, nesse caso, o STF concede o mandado de segurança para proibir a indisponibilidade de bens, já que isso inviabilizaria por completo o cumprimento do acordo pela empresa leniente.

[13] Moro trava investigações para proteger empresas e delatores da Lava Jato, Folha de S. Paulo, ed. 13.06.2018, p. A4.

[14] A primeira iniciativa nesse sentido foi o memorando de entendimentos entre MPF e CGU sobre a confidencialidade das informações trocadas durante a negociação, que depois culminou na Orientação 01/2017 do MPF. Outra iniciativa foi o memorando de entendimentos entre CGU e AGU, que depois culminou na Portaria 2278.